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Publicado segunda-feira, 20 de novembro de 2017 às 09:57 h | Atualizado em 20/11/2017, 11:00 | Autor: Eron Rezende
O artista e sacerdote Mestre Didi comemoraria 100 anos no próximo dia 2 de dezembro
O artista e sacerdote Mestre Didi comemoraria 100 anos no próximo dia 2 de dezembro -

O menino levantou o spray de tinta como quem toma um susto. “Vi um homem”, ele disse. “Deixe de brincadeira e pare de remendar a pintura”, retrucou a senhora ao lado, cozinheira dos dias de festa no terreiro Ilê Asipá, dedicado às almas dos mortos. Além dos dois, havia apenas um cachorro remexendo o lixo. O menino voltou a grafitar o muro, mas não se deixou combalir. “Vi um homem e ele soprou no pé do meu ouvido: evoluir sem perder a essência”. Foi quando a senhora bateu os pés no chão, três vezes, como quem entra num terreno sagrado, e ergueu as mãos ao céu: “Então não era um homem. Era o sacerdote”.

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, mestre Didi, guardião das tradições africanas, sacerdote. No Ilê Asipá, que ele fundou em 1980, são muitos os nomes que recebe. Assim como são muitos aqueles que ainda o veem. Morreu em 2013, faria 100 anos no próximo dia 2 de dezembro. Mas, tratando-se de alguém que passou a vida reverenciando os que já foram, não é de espantar as histórias que dão conta de que ele ainda passa por lá, pelo Asipá, pelas festas dedicadas a Xangô; que sopra conselhos em ouvidos – “evoluir sem perder a essência” era  uma de suas frases favoritas –, ciente do que acontece na terra. 

“E diga mais o que ele disse”, quis saber a senhora. “Disse só e foi embora”, respondeu o menino. Continuaram a finalizar o grafite nos muros que contornam o Asipá, ornamentação que se insere nos festejos do centenário do mestre. Até dezembro, o Ipac promete conceder ao terreiro o título de Patrimônio Cultural da Bahia, luta iniciada há 40 anos por seu fundador. Mestre Didi publicou 20 livros sobre a cultura negra, começando por Yorubá Tal Qual se Fala (1946), com prefácio de Jorge Amado, expôs suas criações artísticas (esculturas que remetem a histórias e procedimentos do candomblé) em importantes museus do mundo, como Guggenheim, em Nova York, e Pompidou, em Paris, mas foi, sobretudo, religioso de duas negras tradições: o culto aos orixás e aos ancestrais.

“Ele cruzou quase um século lutando pelo reconhecimento do candomblé”, disse Genaldo Novaes, alagbá, atual líder religioso do Asipá, enquanto contabilizava os compromissos do mês, quase todos festejos dedicados ao mestre. “Didi uniu o passado, o antigo, ao contemporâneo. Por isso conseguiu chegar ao mundo. Não é incrível que iremos terminar o ano de seu centenário sem uma grande exposição com suas obras, com seus escritos?”.

Fazendo uso de materiais naturais, como búzios, sementes, couro, nervuras e folhas de palmeira, o sacerdote-artista criou algo que pelo glossário contemporâneo seria chamado de instalação. No entanto, sua obra não deve ser apreciada apenas como composição estética. No dicionário de Didi, os pássaros são representações de Ossain, protetor das folhas sagradas, e as serpentes tomam o lugar de Oxumaré, entidade que integrou a criação do mundo, enrolando-se na Terra e dando forma ao globo. Suas obras prestam reverência aos antepassados e às relações míticas. Sobre suas esculturas, pouco falou em vida. 

Como artista, Didi foi um representante da cultura afro-brasileira. Como sumo sacerdote do culto aos Egum (espíritos), foi a ponte entre os vivos e os mortos. Se, por um lado, sua arte é um olhar sobre mitos e tradições ancestrais, sua palavra permaneceu sempre sob um invólucro de santidade. Um certo desapego ao reino material, aos holofotes que recebeu, que talvez explique a ausência de uma exposição dedicada ao seu trabalho em pleno centenário.

Dispersas, as obras de Didi se dividem hoje em três grandes grupos. Há aquelas sob a tutela de instituições culturais – o Museu Afro Brasil, em São Paulo, o MAM-BA e o MAM-RJ –, há aquelas envolvidas numa disputa judicial entre suas três filhas e sua última esposa, a antropóloga argentina Juana Elbein, que não comungam da mesma opinião sobre o destino do espólio, e há, especialmente, aquelas obras cujo paradeiro é um mistério. 

“Podem estar na mão de colecionadores, na mão de pequeníssimas casas culturais. A verdade é que para reunir todas as obras, ou a maior parte delas, seria necessário um esforço de grupo”, disse Genaldo Novaes, que se lembra do mestre como “uma presença elegante, calada, mas ciente de tudo que acontecia ao redor”. “Imagine que beleza, num momento tão turbulento como esse em que passa o Brasil, existir um lugar para apreciar obras que falam sobre nossas raízes, que nos lembram de nossas origens?”.

No reino de Ketu

Filho do alfaiate Arsênio dos Santos e de Maria Bibiana do Espírito Santo, mãe Senhora – terceira a assumir o comando do terreiro Ilê Axé Opó Afonjá –, Deoscóredes foi iniciado no culto aos orixás aos 8 anos. A preocupação de mãe Senhora com a saúde do filho a fez levar o menino para o culto de Babá Egum (culto aos ancestrais) em Itaparica – ela estava certa, o moleque frágil só viria a fazer a passagem para o orum (mundo espiritual) quase 90 anos depois.

Menino, ouvia da família que era descendente da linhagem real dos Asipá, ligação que o levava ao coração de grandes caçadores das antigas nações de Oyo e Ketu, localizadas no território onde hoje está a Nigéria. Algo que o próprio Didi nunca deu importância. “Pensava que aquilo que ouvia com referência a minha família real, levando em consideração a dificuldade que os negros sempre tiveram para manter e preservar a tradição afro no Brasil, principalmente na Bahia, fosse pretexto para tornar mais respeitados o culto e a religião afro-baiana no meio social”, escreveu, em 1971, num artigo publicado em A TARDE.

Mas a realeza se provaria a Didi. Em janeiro de 1967, já tendo publicado cinco livros, entre eles Contos de Nagô (1963), com ilustrações de Carybé, e  Axé Opô Afonjá  (1962), com notas do sociólogo francês Roger Bastide, embarcou com Juana Elbein para fazer uma pesquisa comparada sobre a arte sacra no Brasil, na Nigéria e em Daomé, atual República de Benin, durante três meses, patrocinado pela Unesco. 

O percurso é contado em detalhes por ele no texto Um Negro Baiano em Ketu, de 1968, reproduzido numa publicação comemorativa dos seus 90 anos. Relato que versa sobre seu encontro com Pierre Verger, a carona que o fotógrafo ofereceu até o Reino de Ketu e o momento em que chegaram ao palácio do rei.

“Conversa vai, conversa vem, disse ao rei que era descendente da terra de Ketu. Ele, muito espantado, mandou que eu desse prova. E assim foi que cantei algumas cantigas (em iorubá), enaltecendo a terra, o rei e a riqueza do povo. Eles nunca tinham imaginado que, do outro lado do oceano, pudessem ainda existir pessoas como eu, capazes de cantar cânticos tradicionais entoados pelos antepassados”, escreveu Didi. 

“Minha mulher se lembrou, então, do caso da família real e perguntou por que eu não recitava o Orilé da família, que eu chamo de brasão oral. Não dei atenção. Mas ela e Verger insistiram tanto que fui forçado a recitar. Quando terminei, só vimos o rei de repente exclamar: Há! Asipá! E apontou para um dos lados do palácio, dizendo: sua família mora ali”. 

Em Ketu, descortinou-se para Didi um bairro inteiro dedicado ao culto dos antigos Asipá, uma das linhagens fundadoras daquele reino. E revelou-se, também, a vida de outras tantas famílias apartadas de sua história. Durante semanas, ele ouviu relatos de quem julgava os asipás extintos. E confirmou o que dizia mãe Senhora, que os negros de cá eram reis.

“A imersão no continente africano acendeu em Didi o senso de missão. Sua produção literária, voltada ao estudo da cultura negra, suas esculturas e sua dedicação aos rituais sagrados nos terreiros se tornaram mais intensos”, disse Inaycira Falcão, em seu apartamento, em Ondina, cercada por recortes e fotos que recontam a trajetória do pai. Ao lado das irmãs, Jaguaracyra e Nídia de Iêmanjá, ela trava uma luta “mais emocional do que judicial”,  para que escritos e obras sejam expostos. “É uma visibilidade complexa, pois ele deixou tudo para a última esposa”.

Após separar-se de Edvaldina Falcão dos Santos, Didi iniciou uma união de quase meio século com Juana Elbein, que não legou filhos biológicos, mas  frutos intelectuais. É dessa união, que amigos costumam classificar como intensa e profícua, que data a maior parte das obras (livros e esculturas) do artista, assim como seu ingresso no circuito artístico internacional. 

Um  amigo do casal, que pediu para não ser identificado, disse que “Juana viu em Didi um diamante bruto e, com os contatos que tinha,  apresentou-o ao mundo”. “O mestre encontrou alguém capaz de aprimorar o seu conhecimento. Formavam um casal interessantíssimo. Mas Juana sempre teve com Didi uma relação de amor, admiração e posse”.

Num sábado, no início de novembro, após algumas tentativas, Juana aceitou receber a reportagem em seu apartamento, também em Ondina, sob uma condição: não falaria sobre Didi. 

Lembrou a chegada  ao Brasil, só com a roupa do corpo, após a ditadura se instalar na Argentina; os primeiros amigos intelectuais e o deslumbre ao chegar a Salvador, no início da década de 60. A cada questionamento sobre o acervo, respondia que não daria uma  palavra. “Tenho minha história. Didi é Didi, eu sou eu”, disse, por fim, ao   fechar as cortinas da sala e pedir que a reportagem se retirasse.

Porteira

“Da porteira pra dentro, da porteira pra fora”. Era assim que mãe Senhora caracterizava as iniciativas de aproximação da comunidade religiosa com a sociedade civil. Algo que o filho parece ter compreendido bem. Ao longo de sua trajetória,  dinamizou a diplomacia no terreiro, atraindo artistas e intelectuais de projeção política, que vieram reforçar a legitimação da comunidade negra.

Um dos intelectuais mais próximos ao sacerdote, Muniz Sodré, hoje professor da Escola de Comunicação da UFRJ, lembrou que Didi era “um agregador”. “Andava de terno branco, com chapéu também branco, travando pequenas batalhas pela afirmação da cultura negra”. “Foi um artista escultor de belas obras, que falavam desse grandioso universo da África mítica, onde os deuses estão entre nós,  e por isso suas esculturas lembram totens, emergindo do chão para se lançar no infinito”.

Um dos projetos mais agregadores de Didi é, hoje, no entanto, um espectro. A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos,  na Rua Direta de São Gonçalo, dentro do  Ilê Axé Opô Afonjá, guarda pouco do que foi a Minicomunidade Infantil Oba Biyi, dedicada ao ensino, tendo como base as comunidades ao redor.

“Os ambientes eram bastante ventilados. As varandas e o pátio indicavam o valor de atividades ao ar livre: não havia a presença da chamada sala de aula”, descreveu Laura Paz, uma das ex-alunas da Oba Biyi e autora de um trabalho de mestrado sobre a proposta educacional do espaço fundado por Didi. “Na prática, era uma escola integral que coloca no centro da didática a tradição africano-brasileira.  Mais  que isso, havia um trabalho de autoestima. Isso há 30 anos”.

Embora tenha congregado esforços do poder público, de intelectuais e artistas para colocar a ideia em prática, a escola sofreu mudanças educacionais e estruturais impostas pelo tempo. Completamente municipalizado em 1998, o espaço funciona hoje mais à semelhança de outras escolas do que como um contraponto ao ensino vigente. “Há uma estrutura pedagógica que se perdeu”, disse Laura. “Mas há um legado que se mantém: trata-se de uma escola dentro de um terreiro, o que, em si, facilita a relação de transmissão de conhecimento da cultura africana”.

Um futuro

Da porta do terreiro Ilê Asipá, em Piatã, Antônio Carlos Oloxedê, o Tonho, apontou para o terreno baldio à frente. Neto mais velho de mestre Didi, teve o avô como professor na Oba Biyi e seguiu os passos do ancestral na arte. É Tonho quem hoje confecciona esculturas na tradição aberta por Didi e ensina as crianças do Bairro da Paz, que circunda a comunidade religiosa. “Vê todo esse espaço vazio? Será uma escola, como aquela que o mestre nos ensinou”, disse.

A verdade é que os trâmites para a aquisição do terreno ainda estão na prefeitura, que, em nota à reportagem, afirmou que “a proposta de construção da escola já está sendo analisada, bem como a viabilidade orçamentária”. A despeito da segurança de Tonho, impõe-se no Ilê Asipá certa desconfiança com os rumos políticos, cada vez mais afeitos aos desígnios evangélicos. “O bom de reconhecer o terreiro como patrimônio cultural é que fica mais difícil tirar a gente daqui”, disse um dos membros do Asipá.

“Mais de 80% da periferia é negra. Se você tem uma escola que fala direto com a autoestima, você não tem tiro sendo dado à toa”, disse Tonho. “Nós, dos saberes ancestrais, precisamos chegar a todas essas pessoas. Para que todas essas pessoas cheguem além”. Ou para que evoluam sem perder a essência, como ainda sopra mestre Didi por aí. 

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