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Uma ilha, um casarão, muitos fantasmas

Publicado quarta-feira, 21 de janeiro de 2015 às 14:57 h | Atualizado em 21/01/2015, 15:08 | Autor: Tatiana Mendonça
Cajaíba
Cajaíba -

O portão secular abre-se para o mar, que é também rio, naquela mistura particular da Baía de Todos-os-Santos. Os degraus somem e reaparecem ao gosto das marés. Ao fundo, majestoso, o casarão do antigo Engenho Cajaíba impõe-se com a aura de quem sobreviveu ao tempo. Em breve, pode mudar de feição. A prefeitura de São Francisco do Conde, onde o casarão e a ilha que o abriga estão situados, pretende transformar o lugar num museu temático. José Carlos Reis, secretário de turismo do município, conta que para formatar o projeto inspirou-se em experiências bem sucedidas, como o Museu do Futebol e o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o Museu da Gente Sergipana, em Aracaju. "Nossa ideia é que seja um museu dinâmico, com muita tecnologia". Ainda não há prazos definidos.  "Na gestão pública, prazo é mais a longo prazo...".

Outra iniciativa da prefeitura na ilha de Cajaíba, uma das maiores da Baía, é dotar de infraestrutura uma pequena praia localizada ao sul do lugar. Em setembro de 2013, a ex-prefeita Rilza Valentim - que faleceu em julho do ano passado, vítima de embolia pulmonar - anunciou, com um quê do mítico personagem Odorico Paraguaçu, que São Francisco do Conde finalmente "ganharia" a primeira praia da cidade. A ideia foi levada à frente com alguns melhoramentos: um parque ecológico integrado para trilhas e a demarcação de uma área marítima para esportes náuticos. "O município precisa ter uma alternativa econômica para não ficar tão dependente do petróleo", explica o secretário, referindo-se aos royalties que fazem de São Francisco do Conde campeã baiana em renda per capita, que gira em torno de pouco mais de R$ 106 mil.

Os projetos do poder público para a ilha surgiram depois de um naufrágio. O estoniano Margus Reinsalu, dono de grande parte do local, tinha um projeto megalomaníaco de construir ali um complexo com mais de mil unidades hoteleiras, setecentas unidades residenciais, dois campos de golfe e marina para cerca de 100 barcos, ao custo de R$ 2 bilhões em investimentos.  Para gerenciar a obra, foi criada uma empresa, a Property Logic, que reunia investidores estrangeiros e ainda é representada, no Brasil, pelo engenheiro civil André Berenguer.

A prefeitura de São Francisco do Conde foi defensora de primeira hora do Ilha de Cajaíba Eco Resort, valendo-se do corriqueiro argumento da criação de empregos - a previsão era de que cinco mil vagas diretas fossem criadas. O primeiro lote seria inaugurado em dezembro de 2012. Um mês antes da data prevista, o que anunciou-se de fato foi o abandono do projeto. A crise na Europa, que teria afugentado investidores, ficou sendo a explicação oficial da desistência.

Há de ter pesado, também, o pedido do Ministério Público federal e estadual para que a licença ambiental concedida pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA) fosse suspensa, aliado à pressão dos movimentos sociais locais. Em cartas abertas, eles afirmaram que a ilha pertence ao território das comunidades remanescentes de quilombos e às comunidades pesqueiras tradicionais, que usam o local para pescar, secar camarão, catar mariscos e frutas. A estimativa é que 10 mil pessoas tirem o sustento da ilha. Um laudo antropológico elaborado pelo INCRA confirmou que a área integra o território quilombola de São Braz e Acupe.

Em nota enviada à Muito, o órgão afirmou que está finalizando o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da comunidade de São Braz. Esta é a segunda etapa das sete necessárias no longo processo de regularização fundiária.

RAZÃO E SENSIBILIDADE

Volta e meia, Margus visita à ilha a passeio. Anda de cavalo, toma banho na praia, vistoria a propriedade para engordar outro tipo de gado. Vendeu uma área no sudoeste de Cajaíba para as empresas baianas  Mazza e Construterra, que pretendem construir ali um condomínio com infraestrutura náutica para que os proprietários possam chegar em casa de barco. Uma pesquisa de mercado já foi feita para avaliar a viabilidade do empreendimento.

André acredita que o projeto deva ser desenvolvido nos próximos dois anos. Ele gosta de repetir que o novo foco de desenvolvimento da ilha é "sustentabilidade e integração com a comunidade". Trabalha para que Cajaíba se torne um lugar para onde São Francisco do Conde possa crescer. "A Property é hoje muito mais uma vendedora de áreas para desenvolvedores do que uma desenvolvedora, em si".

Talvez seja um pouco mais que isso, já que André tem uma relação próxima com a prefeitura, atuando nos bastidores para "criar um destino", "valorizar o ativo". O primeiro passo foi desapropriar o casarão e uma área de acesso por R$  1,7 milhão, há pouco mais de um ano. As negociações já estão avançadas para que Margus "ceda" a área que será destinada ao parque ecológico. Eventuais contrapartidas ainda não estão definidas.

A prefeitura está bastante sensível, digamos assim, aos apelos da iniciativa privada. "Ele (Margus) investiu muito na ilha e até hoje não teve retorno. A prefeitura seria um desses parceiros junto a esse empreendedor para estar desenvolvendo a ilha", diz José Carlos. Ele irá propor mudanças no PDDU do município, especificamente na zona da ilha de Cajaíba. "Hoje não se pode ter quase nenhuma construção ali. É uma incoerência. A gente vai adequar isso".

Incoerência ou conquista, é uma questão de ponto de vista. O secretário sabe que, nesse processo, enfrentará resistências de associações comunitárias locais. "Audiência pública é o complicante".

DESCASO

Do cais de São Francisco do Conde, a ilha de Cajaíba avista-se tão próxima que quase parece possível chegar à pé. Depois de tomar um barquinho, que leva pouco mais de cinco minutos, a reação automática é erguer a cabeça para ver o topo das majestosas palmeiras imperiais que enfileiram-se à frente da casa. Nasceram muito antes de nós todos que estamos aqui, com sorte, nos sobreviverão.

A construção histórica foi tombada pelo IPAC em 2004. A fachada, com dez janelas e escadaria dupla, mantém-se bem preservada. Já andar por lá é como estar num filme meio de época, meio de terror. Parte do assoalho do piso e do teto cederam. Nos poucos móveis que permanecem no casarão, o estado de conservação é igualmente ruim, fazendo par no quadro geral de desolação com a sujeira produzida pelos muitos cachorros e gatos que vivem ali.

Do casarão dá para chegar à Praia do Sodré por uma trilha de cerca de 3,5 Km. O parque ecológico situaria-se nos arredores. Alguns moradores da região já a aproveitam, antes mesmo da "inauguração". Apesar da faixa de areia estreita, o lugar guarda uma beleza bucólica. Para preservar a impressão, a dica é olhar sempre em direção ao mar, já que nas proximidades da mata acumula-se todo tipo de lixo.

Na região, corre a lenda de que a ilha é assombrada pelos espíritos dos escravos torturados impiedosamente por Fernão Rodrigues Castelo Branco, o primeiro e único Barão de Cajaíba, que dali comandou as tropas legalistas no processo de independência da Bahia e enfrentou a revolta da Sabinada.

Os moradores gostam de repetir histórias para provar sua crueldade, como a vez em que teria entregue numa bandeja os seios de uma escrava elogiados algumas horas antes por um visitante. O historiador Rodrigo Lopes acredita que uma parte disso é falação, a outra, não. "Há um documento, uma carta da Condessa de Barral, grande senhora da elite baiana, à Dom Pedro II, na qual ela diz que o Barão de Cajaíba era um homem de fino trato, mas conhecido também pela truculência com que tratava os escravos". Ele duvida, porém, que o Barão tivesse o costume de matá-los afogados, como também se diz, já que eram bens caros.

Bruno Alves, 30, um dos vigilantes do casarão, construído em meados de 1815, jura que já viu fantasma. Numa noite de lua cheia, avistou um homem se balançando em uma cadeira por detrás da janela. Sentiu um arrepio pelo corpo que eriçou a nuca. Com a manga da camisa, esfregou os olhos. Quando os abriu de volta, o homem não estava mais lá. "O que eu fiz foi rezar. O morto só precisa disso, de reza". Se entre os fantasmas vagar pela ilha o espírito do Barão de Cajaíba, certeza que está devastado pelo estado da sua antiga casa. Quase dá para ouvi-lo berrando enfurecido. Nada como o tempo. Não faz mais medo.

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