Mudanças na vizinhança afeta relações de pertencimento | A TARDE
Atarde > Muito

Mudanças na vizinhança afeta relações de pertencimento

Confira reportagem principal da Muito

Publicado domingo, 21 de abril de 2024 às 08:00 h | Atualizado em 21/04/2024, 10:17 | Autor: Pedro Hijo
Comerciante José Silva, o Seu Zé, em frente a barraca que ele mantém no Itaigara desde o começo dos anos 1980
Comerciante José Silva, o Seu Zé, em frente a barraca que ele mantém no Itaigara desde o começo dos anos 1980 -

Há 43 anos, o pernambucano José Alfredo Silva, conhecido como Seu Zé, abre a sua barraca de frutas às 5h e fecha às 17h. Sempre no mesmo ponto, no Alto do Itaigara, em Salvador. Atualmente com 87 anos, ele viu o entorno mudar. Quando chegou ao local, conta o comerciante, havia um prédio na região. Atualmente, há 33 edifícios no Alto do Itaigara.

A decisão de abrir a barraca veio da percepção que teve quando trabalhava como vigia na obra do primeiro prédio do local. Com o sonho de ser autônomo, ele notou que o loteamento tinha potencial de crescimento, juntou algumas madeiras e montou a barraca. O banquinho onde os moradores se sentam para conversar com Seu Zé é o mesmo desde o início do negócio, nos anos 80.

Debaixo da copa de uma árvore, a barraca do pernambucano e o próprio comerciante são conhecidos por toda a vizinhança. “Parece relação de pai e filho”, diz ele sobre o contato com os clientes. A TARDE conversou com moradores de outros territórios de Salvador que, assim como Seu Zé, testemunharam mudanças na cidade ao longo das décadas.

Ao lado do bairro célebre por versos de Vinicius de Moraes, Piatã pode não ser tão famoso quanto Itapuã, mas o morador Jorge Dantas, 65, garante: “Quem vem morar em Piatã não quer sair daqui”. Residente do local há 22 anos, o motorista de transporte escolar se mudou para lá para ficar mais próximo da família. Antes, morava no bairro do Imbuí.

“Na época, só tinha um condomínio em Piatã. Depois, foram surgindo outros”, conta Jorge. Circulando pela vizinhança como motorista, ele percebeu mudanças no bairro desde a década de 2000. “Há 20 anos, eu saía de Piatã às 6h20 e pegava os alunos sem problemas, mas o bairro ficou mais populoso e tive que mudar meus horários por causa do engarrafamento”.

Com o tempo, Piatã passou por obras como o alargamento das pistas, diminuindo os entraves no trânsito. O número de escolas e, portanto, de clientes de Jorge, também cresceu. Aposentado, ele segue trabalhando como autônomo e síndico do condomínio onde mora há 15 anos. Jorge ainda foi presidente da associação dos moradores da alameda onde reside.

“É um lugar que ainda mantém um verde natural, não tem tantos prédios. É um local super tranquilo”, diz o morador. Apesar de destacar qualidades no bairro, como a oferta de mercados, Jorge pontua o excesso de carros. “Piatã tem uma coisa que é o fato de todo mundo ter carro. Não dá para fazer muita coisa a pé. Se você vai comprar um pão, vai de bicicleta, de moto ou de carro”, relata.

Nos limites de Salvador e do município de Simões Filho, o bairro de Valéria foi formado por loteamentos e ocupações de fazendas e se tornou parte da capital no final da década de 1960. Aos 21 anos de idade, o morador do bairro Carlos Victor uniu o sonho de fazer cinema e o de mostrar o local onde cresceu para fora da vizinhança ao dirigir um documentário sobre Valéria.

“Sou nascido e criado aqui. Tenho uma boa relação com todo mundo. Quando a gente nasce no bairro, já se torna conhecido dos vizinhos, né?”, comenta Carlos Victor. No documentário Ecoar Valéria, disponível na plataforma de vídeos YouTube, o diretor destaca as características positivas do bairro e dos moradores: “A gente quer mostrar o lado bonito do que a gente é”.

Visão de dentro

“Em Valéria, a gente sempre teve uma cultura viva, que acontece, mas não é mostrada. Sempre teve muita gente produzindo cultura, mas sem visibilidade”, conta Carlos Victor. Para produzir o documentário, o jovem que teve formação teatral na unidade de Valéria do projeto municipal Boca de Brasa (Fundação Gregório de Mattos), inaugurado em 2018, contou com o incentivo de um edital.

Frequentador de salas de cinema e teatro desde a infância, Carlos Victor já fez cursos de sonorização, iluminação e gestão cultural e almeja uma formação universitária na área. “Desde pequeno eu tinha o sonho de fazer cinema, mas era algo vago para a gente que mora aqui na comunidade”, comenta. O documentário é a primeira produção audiovisual dele.

“Eu queria falar muito sobre o meu bairro, levar uma visão verdadeira do que somos, uma visão de dentro para fora. A gente tem o nosso ponto de vista e sabe que tem coisas muito boas aqui”, diz Carlos. No Ecoar Valéria, ele documenta o trabalho de artistas da região. “É um filme que pensa numa forma de reverberar essas vozes”.

O novo sonho do diretor é que os vizinhos se aproximem dos produtos culturais feitos em Valéria. “Quando esses projetos são mostrados, os moradores conseguem ter a dimensão do que são e despertam a vontade de participar”.

Carlos não descarta a possibilidade se mudar para outra cidade ou país para crescer profissionalmente, mas quer manter o foco na valorização de Valéria. “É preciso fortalecer nossa casa”.

Se Jorge Dantas viu o trânsito ao redor mudar e Carlos Victor testemunhou a efervescência cultural do seu entorno, o corretor de imóveis Fernando Cavalcanti, 81, vivenciou a criação do bairro onde mora, o Aquarius. Fundado como um loteamento da Pituba, o Aquarius ganhou status de bairro em janeiro, com sanção da prefeitura de Salvador.

Pernambucano, Fernando se mudou para Salvador há 51 anos e mora há 30 no Aquarius. Ele era amigo do criador do loteamento, que também é de Pernambuco. Quando o corretor comprou o primeiro apartamento onde morou no local, havia apenas quatro prédios em construção no entorno. “O Aquarius não tinha nada em volta, era só um terreno baldio”, lembra Fernando.

O corretor destaca que, no início, o loteamento não tinha “cara de bairro”. “Era uma continuação do Caminho das Árvores, mas aí foi surgindo centro comercial, colégios, hospital”. Atualmente, ele mora perto da praça principal do Aquarius, onde há a realização de eventos durante todo o ano. “Tem sempre alguma coisa acontecendo”.

A “cara de bairro”, diz Fernando, está consolidada pelo sentimento de pertencimento dos moradores. “Aqui, ninguém diz que mora na Pituba ou no Caminho das Árvores. A gente já sentia que era um bairro”, conta o corretor, que tem três filhos, dois deles morando em prédios no Aquarius.

“Não pretendo me mudar, aqui tenho uma posição estratégica, com saída fácil para shoppings, vida comercial da Pituba, caminho para o mar a pé e a Avenida Magalhães Neto, onde dá para fazer exercício no fim de semana”, destaca. Fernando conta que gosta de caminhar pelo bairro, onde mantém amizade com vizinhos.

História e diversidade

Assim como Fernando, a relações públicas Thaís Almeida, 34, assistiu à transformação oficial do entorno onde mora. Residente do Dois de Julho, no Centro Antigo de Salvador, desde que nasceu, ela diz que os moradores já eram “bairristas” antes da localidade tornar-se um bairro, em 2020. “Existe um sentimento de pertencimento dos moradores, principalmente dos mais antigos”, diz Thaís.

O Dois de Julho ganhou status de bairro assim como o Aquarius, mas a história do local é mais antiga, com construções como o Solar do Sodré e Museu de Arte Sacra, ambas do século 17. O Largo Dois de Julho, no centro do bairro, foi batizado por causa de um chafariz em homenagem ao dia da Independência do Brasil na Bahia.

O monumento foi originalmente instalado na Praça da Piedade, por onde o exército brasileiro passou em desfile no dia 2 de julho de 1823. Mas, com a construção da Avenida Sete de Setembro, o chafariz foi realocado no início do século 20. Depois, foi novamente transferido de localização e, atualmente, está no Largo dos Aflitos, no bairro de mesmo nome.

A casa da família de Thaís no Dois de Julho é a mesma desde a década de 1970, quando o avô materno se mudou de Barreiras, no Oeste da Bahia, para a capital. Com tanto tempo no bairro, ela relata uma relação familiar com os vizinhos. “Apesar da individualidade de cada família e morador, há um senso muito forte de comunidade”, destaca.

Questionada se ela pretende trocar o Centro Antigo por bairros mais novos de Salvador, Thaís não deixa dúvidas: “Definitivamente, não trocaria”. Apesar de reconhecer a necessidade de requalificações no entorno, ela diz gostar da “vida de bairro”. “O Dois de Julho tem uma atmosfera mais interiorana, que é diferente do clima dos novos centros comerciais da cidade”.

A importância histórica e a “cara de bairro” se unem a uma característica recente do Dois de Julho que Thaís gosta: o local se tornou um polo LGBTQIAPN+ de Salvador. “É como se esse cenário diverso fosse se estendendo, se desenvolvendo naturalmente pelas ruas e pelo perímetro do bairro”, conta a moradora.

Irmãos

Diferentemente de Jorge Dantas, Carlos Victor, Fernando e Thaís, Seu Zé testemunhou o crescimento do entorno sem morar no local. O barraqueiro trabalha no Alto do Itaigara e reside no Parque Bela Vista. A família dele mora numa casa em Itinga, bairro que é divido entre Salvador e Lauro de Freitas. Apesar disso, Seu Zé se sente parte do loteamento onde tem uma barraca.

“Não me incomoda não morar no Alto do Itaigara. O que prejudica o ser humano é barriga e bolso. Com o bolso e com a barriga cheios, não tenho preocupação”, brinca. Quando abriu a barraca, conta o comerciante, ele dormia no local. Mais de 40 anos depois, o faturamento do comércio possibilitou a compra da casa de Itinga e a manutenção dos seis filhos de Seu Zé.

Além de tirar o sustento do bairro, o comerciante relata que criou uma relação familiar com a vizinhança. “São como irmãos! Foram os moradores daqui que me ajudaram com os documentos da prefeitura para eu conseguir a licença e trocar a barraca de madeira por uma de chapa”, diz Seu Zé, que atualmente divide o comércio com um dos filhos.

Seu Zé já foi, inclusive, socorrido por moradores, que perceberam que o comerciante não estava bem e o levaram ao hospital. Um dos orgulhos dele é ter testemunhado não apenas o crescimento do bairro, mas também dos residentes. “Tem muita criança de 40 anos atrás que hoje em dia é médico, engenheiro, desembargador e, às vezes, para aqui para conversar comigo”.

Publicações relacionadas