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Crônica de vozes noturnas

Confira a crônica da Muito

Publicado domingo, 21 de abril de 2024 às 13:00 h | Autor: *Luisa Sá Lasserre
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— Você tá ouvindo?

— O quê?

— Esse pessoal aí conversando… deve ser no apartamento de cima. Não tá ouvindo?

— Não… (suspiro) acho que esse travesseiro tá cedendo, minha cabeça afunda.

— Olha aí… escutou? Foi o cara quem falou agora.

— Falou o quê? Eu, hem, não tô ouvindo nada. Você tem certeza?

— Claro! Estava ouvindo melhor lá de dentro do banheiro. Aqui o som tá um pouco mais abafado, mas dá pra ouvir.

— É por isso que ando tendo aquelas dores no pescoço…

— Por causa dos vizinhos conversando?

— Não, né… por causa do travesseiro! Você parece que não me escuta.

— Ah sim, claro, claro que eu escuto. Ouviu agora??

— Tô ouvindo um cachorro latindo.

— Que cachorro? É a mulher dando risada.

— An?! (Rindo alto agora)

— …

— Sério, e sobre o que eles estão falando?

— Não sei, não dá pra entender. Você chamou o marido da Dalva pra vir dar uma olhada no encanamento?

— Tentei e não tive resposta. Pedi pra ela falar com ele… já que você não sabe nem olhar uma pia, né…

— Ah peraí… acha mesmo que eu deveria saber olhar encanamento de pia?

— Você é engenheiro. Que tipo de engenheiro não sabe essas coisas básicas?

— Engenheiro químico, Luana… eu sou engenheiro químico, lembra? O que tem a ver com encanamento?

— Esse travesseiro tá, definitivamente, muito ruim. Preciso comprar um novo, urgente. Cadê o pessoal?

— Você parece que nem sabe com o que eu trabalho, pô. Que pessoal?

— O do converseiro… Ainda estão falando? Ouvi um passarinho piando lá no fundo… por que será que os passarinhos agora cantam também de noite? Antigamente não era só de dia?

— Você não para de falar, por isso não ouve a conversa do outro apartamento. Eles ainda estão falando, sim. E esse pássaro deve ser alguma espécie noturna.

— Será? No meio da cidade? Eu acho que os bichos estão desorientados com tanta energia elétrica, movimento, trânsito, esse povo aí conversando alto a essa hora…

— Você conseguiu escutar também? Não sei, me pareceu que eles podiam estar discutindo… percebeu um tom de voz mais alto?

— Eu não tô ouvindo nada, Arnaldo. Será que isso não é coisa da sua cabeça?

— Da minha cabeça? Claro que não! Eu tô ouvindo mesmo.

— Tem certeza? Você está certo disso?

— Pô, Luana, é claro, né… cada uma.

— Olha, eu tô com sono… esse travesseiro não ajuda e esse pessoal conversando também não.

— Mas você nem tá escutando…

— Mas você tá, e aí não para de falar deles…

— Tá bom, eu vou parar. Boa noite pra você. Se for briga lá em cima, eu não tenho nada a ver com isso mesmo, né.

— Mas você acha que eles estão brigando? Será que é melhor dar uma subidinha lá e colar o ouvido na porta? Leva o celular porque, vai que… já chama a polícia.

— Olha, eu não sei. Não dá pra saber, ainda mais com você aí sem me deixar prestar atenção nem me ajudar a entender melhor. Acho que não é briga.

— Francamente! Boa noite!

— …

— …

— Você dormiu? Luana? Você dormiu? Ou tá tentando ouvir melhor?

(Enquanto isso… no apartamento de cima)

— Você ainda tá ouvindo alguma coisa?

— Parece que pararam, finalmente…

— Ufa! Vamos dormir?

— Poxa, o papo tava tão bom…

*Luisa Sá Lasserre é jornalista e escritora

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