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Andréa Pachá - Desembargadora e escritora

“Fora da política não há saída”

Publicado domingo, 14 de abril de 2024 às 06:41 h | Autor: Gilson Jorge
Desembargadora Andrea Pachá
Desembargadora Andrea Pachá -

Antes de entrar para a magistratura, a desembargadora do TJ-RJ Andréa Pachá cultivava a escrita. E com a experiência que teve em duas décadas de atuação como juíza em várias de família, reuniu histórias que se transformaram em livros, como A vida não é justa, e na série Segredos de Justiça, produzida pela TV Globo, a partir de seu livro Segredo de Justiça. No próximo dia 26, a desembargadora fará uma palestra em Salvador sobre envelhecimento e autonomia existencial, no V Congresso Baiano e I Encontro Nordestino de Direito das Famílias e Sucessão, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Familiar, secção Bahia. Nesta entrevista, a desembargadora e escritora, que se declara feminista e antirracista, conversa sobre os desafios enfrentados pela justiça e a necessidade de priorizar os interesses da sociedade.

Uma das crônicas que a senhora escreveu no livro A Vida não é justa relata a história de um casal em processo de divórcio, em que ao final se vê que a mulher não queria de fato se separar, mas forçar o marido a prestar atenção nela. Como foi exatamente? Acontece muito de audiências se tornarem um pouco uma sessão de terapia?

Eu não tenho formação em psicanálise e nem faço intervenção como terapeuta. Mas muitas vezes o espaço da audiência é o único encontrado pelo casal para poder conversar. E, às vezes, a exposição daquelas dores, das tristezas, dos ressentimentos vêm à tona em um lugar que não deveria ser usado para isso. Acontece de as pessoas se exporem excessivamente em alguns momentos da audiência pela falta de possibilidade de conversa anterior. E não é muito comum uma história de reconciliação. Essa que eu conto no livro é uma exceção. Eu fui juíza de família durante 20 anos e acho que houve duas ou três audiências nas quais as partes se reconciliaram. Normalmente, quando as pessoas chegam ao judiciário elas já têm decidido o fim da relação. Mas acontece e pode acontecer que naquele momento, com a possibilidade de ouvir e se fazer ouvir, as pessoas entendam que não era bem aquela a decisão, que querem tentar mais um pouco. Isso é possível.

No caso contado no livro, é curioso que a discussão era em torno do hábito do marido ver futebol, que inicialmente parecia não ser um problema, mas depois que os filhos cresceram, a mulher se deu conta de que estava sozinha em muitos momentos e passou a se queixar...

É como se ela só tivesse enxergado o próprio desejo nesse momento. E essa história foi adaptada para o teatro, com interpretação de Emiliano Queiroz e Dona Léa Garcia. Foi o último espetáculo que Dona Léa fez e foi lindíssima a representação dos dois.

A gente passou por uma pandemia e ainda vive uma briga política que recrudesceu nos últimos anos. Imagino que ambos os eventos pesam muito em questões que chegam às varas de família. A senhora demonstrou ter sensibilidade para lidar com isso. Mas nem todos os juízes são assim e alguns até tomam parte na chamada polarização. A senhora considera que a justiça está preparada para lidar com a divisão política do país de forma equânime?

Eu penso que nem a sociedade nem as instituições estavam preparadas, e não estão ainda preparadas para lidar com essa nova linguagem que é inaugurada nas redes sociais. Eu percebo que essas polarizações, tanto políticas quanto sociais e identitárias, são gestadas no ambiente da rede social. Todo mundo diz que as pessoas sempre foram assim, radicalizadas. Isso não é verdade. Nós sempre convivemos com diferenças, sempre discutimos as diferenças e sempre aprendemos que para viver em grupo você precisa pactuar que é possível a convivência sobre determinados princípios e valores. Quando as redes sociais inauguram um ambiente de polarização, é como se você explodisse a complexidade humana. E nós somos humanos, contraditórios. Nós erramos, somos precários. E nesse contexto, nesse ambiente da rede, não é possível atender a essa complexidade. E aí as polarizações se ampliam. Claro que isso transborda das redes e é remetido para a vida. Tanto nos processos, nas relações familiares, quanto nas instituições. A mesma linguagem que polariza a sociedade também polariza autoridades e integrantes de instituições porque integram a sociedade. É um momento que é muito turbulento e o que eu tenho procurado fazer é manter a racionalidade, embora eu reconheça a dificuldade de enfrentar esse embate no ambiente da rede. A linguagem humana é a linguagem que me constitui. Se eu perco essa linguagem, eu nem consigo pensar sobre esse fenômeno. É um momento difícil, mas como otimista que sou tenho esperança que nós o suplantemos. E que afirmemos os direitos fundamentais e a humanidade.

Mas isso é um tema também no judiciário como um todo?

É um tema na sociedade como um todo e também no judiciário. Juiz não nasce de ovo. Juiz nasce da sociedade, especialmente da elite, que tem acesso à universidade, a um concurso público, que tem condições de se preparar para ser aprovado em um concurso. Então, é natural que essas mesmas divergências que aparecem no dia a dia, no cotidiano da sociedade também apareçam no judiciário. E claro que isso é um problema, porque é como se as instituições fossem sequestradas pela polarização. A gente precisa resistir a isso. Não se pode perder a dimensão da relevância da democracia institucional no momento que nós vivemos. Fora da política não há saída. Fora da política há a barbárie, a lei do mais forte, cada um por si. É a sociedade narcísica, onde o outro não importa. É um momento de muita reflexão, vejo isso como um momento de muita reflexão, um momento muito rico. Acho um privilégio ser contemporânea desse momento, com toda dificuldade que ele tem.

No seu Instagram há uma frase sobre geopolítica, afirmando que nas guerras atuais os países fazem fronteiras com bilionários...

Essa transformação nós fomos acompanhando ao longo do tempo. Quando você traz o neoliberalismo para o centro das relações políticas você já começa a trabalhar um conceito de Estado mínimo. Isso vai mudando o Estado. Aí alguém pergunta se é bom ou ruim. O que se vê em relação aos direitos fundamentais e a necessidade de enfrentar a desigualdade que estrutura o mundo é que isso é péssimo. Esse modelo não tem funcionado, tem aprofundado as desigualdades. E era previsível que isso acontecesse. Quando você reduz a importância do Estado, amplia a relevância do capital. E o que vivemos nesse momento não é só o modelo capitalista, é um modelo de superconcentração. Você imaginar que cinco empresas de tecnologia controlam a comunicação do mundo dá bem a dimensão do momento que nós estamos vivendo.

E por falar no controle da comunicação, como a senhora vê esse episódio de Elon Musk, dono do X, ex-Twitter, fazendo críticas ao judiciário brasileiro e a reação do Supremo?

Vejo como uma estratégia de linguagem usada pela rede. Na verdade, esse contraponto é um conflito que na vida real é inexistente. Você tem a notícia turbinada no ambiente da rede pautando tanto a mídia quanto as instituições. Isso é um não-problema. Enquanto nós perdemos tempo com esse dilema ou com esse confronto forjado na rede, deixamos de investir tempo para enfrentar os nossos problemas reais e cotidianos. A gente precisa enfrentar questões que dizem respeito à melhoria de vida das pessoas, a sustentabilidade do planeta, essas questões precisam ser enfrentadas. Só que quando você fica sequestrado por uma pauta forjada na rede, você pouco tem tempo para se dedicar a problemas reais e a questões que interessam ou deviam interessar à humanidade. Então, eu não vejo isso como um problema que devesse ganhar essa dimensão. Tento reduzir a relevância desse problema para o tamanho que ele tem. Na rede, você tem essa possibilidade de falar o que quer e a depender do problema e do monopólio da comunicação você turbina ou não turbina essa informação.

A senhora vem a Salvador no final deste mês para participar do V Congresso Baiano e I Encontro Nordestino de Direito das Famílias e Sucessão. Fale um pouco da sua expectativa para o evento, por favor.

Apesar de todo esse confronto no mundo e desse cenário aparentemente caótico, eu vou falar sobre direitos das famílias. Vai ser um congresso extremamente bem organizado, as pautas são muito contemporâneas e nesse congresso nós tratamos das questões humanas, as questões que acontecem entre a vida e a morte e a minha participação vai ser sobre envelhecimento e autonomia. Eu vou falar sobre possibilidades que temos para enfrentar a longevidade, fazendo prevalecer o nosso desejo até o fim.

Sobre autonomia, chega um momento da vida do idoso que os filhos passam a discutir a possibilidade de tutelar o pai, como em casos de casamento com uma pessoa muito mais jovem. Para a justiça, em que situações uma pessoa perde a autonomia?

A pessoa perde autonomia quando ela não tem mais como dispor sobre a própria vida. Uma pessoa que tem uma doença mental ou uma degenerativa avançada, que teve um AVC e não consegue se comunicar. Para esses casos, há necessidade de nomeação de um curador, para cuidar dos interesses civis dessa pessoa. Isso se restringe à gestão patrimonial.

No Brasil, temos mais de 30% da população evangélica. Por razões religiosas, há pessoas que não aceitam certos procedimentos de saúde, como a vacinação. Isso aconteceu na pandemia de Covid, com alguns familiares cristãos se negando a vacinar pessoas vulneráveis e sem autonomia. O que se pode fazer nesses casos?

Tanto crianças e adolescentes quanto idosos em situação de vulnerabilidade têm amparo e tutela estatal. Se há uma resistência familiar ao cuidado necessário no trato com as crianças e com os idosos, o Ministério Público pode representá-los na afirmação dos cuidados a que eles têm direito.

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