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Reúso na construção reduz impacto ambiental

Reaproveitamento é opção sustentável e com autenticidade estética

Publicado sábado, 20 de abril de 2024 às 05:00 h | Autor: Joana Oliveira
Com reaproveitamento, projeto de Victoria Nizarala transformou antigo galpão em uma casa, na Chapada
Com reaproveitamento, projeto de Victoria Nizarala transformou antigo galpão em uma casa, na Chapada -

No coração da Rua Chile, no centro de Salvador, um casarão de 200 anos ressurgiu. Mantendo parte de sua estética original, o imóvel de 900 metros quadrados (m²) ganhou portas, bancadas e luminárias oriundas de desmontagens de outros imóveis, além de peitoris de janelas feitos com pisos de uma escada de mármore. O deck com vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos foi feito com parte do tabuado do extinto Teatro Acbeu, e placas do forro colmeia de um edifício no Corredor da Vitória foram usadas para cobrir as instalações elétricas. Feito totalmente a partir de materiais reutilizados, o projeto da arquiteta Naia Alban ganhou, no ano passado, o Prêmio Arquitetura Tomie Ohtake Akzonobel, um dos mais relevantes na área.

A maior parte dos materiais de reúso do Casarão 28 —provenientes de 35 demolições— chegou graças à Arquivo SSA, uma empresa pioneira que desmonta imóveis e reutiliza materiais que seriam descartados. “Tudo começou quando decidimos reformar uma casa e não tínhamos dinheiro, então começamos a pegar o que a cidade joga fora, onde nada se recicla, e usamos. É um material de altíssimo valor, de portas e pisos de madeira nobre até, porcelanas sanitárias”, conta Pedro Alban, sobrinho de Naia e um dos sócios da Arquivo SSA, que já desmontou e reaproveitou 160 toneladas do que muita gente considera mero resíduo.

“Esse reaproveitamento é 90% mais relevante do que ter um painel de teto solar num edifício, um estacionamento de bicicletas no condomínio ou outros anúncios do marketing ambiental feito pelas grandes construtoras”, afirma Alban. Além do viés econômico de fazer algo de qualidade um pouco mais barato, com madeiras e outros materiais nobres, ele destaca que o material reutilizado garante uma autenticidade estética que confere mais identidade ao imóvel.

Rudá de Sá, sócio do Jurema Ateliê de Marcenaria, junto com João Fraga, concorda. Ambos abriram o negócio em 2007, com o propósito de trabalhar com uma marcenaria artesanal e de menor impacto no meio ambiente. Eles se incomodavam como a cadeia de produção da madeira, desde a extração, pode ser predatório. Decidiram, então, construir móveis com reúso. “Isso nos dá acesso a madeiras variadas. Acabamos encontrando produtos nobres que são até difíceis de achar nas madeireiras hoje em dia. Nós recuperamos as marcas que ficam da construção civil, como fissuras ou furos de pregos, e damos uma estética própria àquele material”, diz.

Na Casa Castanho, cafeteria localizada no Rio Vermelho, é possível contemplar a beleza com memória que o reaproveitamento traz. No projeto assinado pelas arquitetas Victoria Nizarala e Anna de Carvalho, um dos destaques é uma grande porta de ferro e madeira retorcida. “O imóvel é dos anos 1930 ou 1940 e tem esquadrias originais, mas exigia adaptações internas. Na fachada principal, havia uma janela de blocos de vidro, que não combinava com a estética do local. Achamos, então, uma outra, proveniente de demolição, para substituí-la”, conta Victoria Nizarala.

Esse não foi, no entanto, o primeiro projeto sustentável da arquiteta. Em 2020, a dona de uma fazenda agroflorestal em Ibicoara, na Chapada Diamantina, convidou-a para transformar um antigo galpão de café num imóvel habitável. Com vãos de quatro metros e imaginando um espaço com muitas aberturas, Victoria encarou o desafio de não usar vidro, para não prejudicar os muitos pássaros que voam por ali, nem estruturas de alumínio, que não combinam com a estética rural. Decidiu, então, usar madeira de reaproveitamento para construir a Casa Carcará. “Nas três fachadas principais, fizemos um verdadeiro mosaico de janelas. Tem pedaço de janela pequena com janela grande, montamos um quebra-cabeça”, conta. O palco de um teatro demolido foi transformado no deck de madeira da área externa.

“Tudo isso foi feito com um projeto minuciosamente desenhado. As pessoas acham que trabalhar com reúso é fazer improvisação, mas não”, ressalta Victoria. Para ela, a sustentabilidade que essas propostas trazem vai além do meio ambiente e chega nas relações de trabalho. “Quando há reaproveitamento de materiais, trocamos esse investimento pelo investimento na mão de obra”, diz.

Potenciais e obstáculos

E não são apenas pequenos negócios e arquitetos que estão atentos à necessidade de tornar as construções mais sustentáveis. A Tarkett, por exemplo, multinacional com sede na França que fabrica pisos vinílicos, trouxe ao Brasil, em 2018, seu programa de logística reversa. “Contamos com revendedores e instaladores parceiros em todo o país, que armazenam as sobras de piso vinílico e nos vendem de volta. Fazemos a coleta do material, que é enviado para a fábrica e usado na produção de um novo piso”, conta Vanessa Costa, responsável pela iniciativa. Ela diz desejar que empresas concorrentes adotem programas similares, mas destaca as dificuldades que desestimulam o mercado.

“Nossa maior dor burocrática é a falta de uma legislação clara e benéfica no Brasil sobre logística reversa. Se cobra imposto sobre tudo. Pagamos R$ 1 por quilo de sobra de material. Mas se o profissional vai emitir uma nota sobre a qual incide um ICMS de 12%, muitas vezes nem compensa para ele nos repassar as sobras”, lamenta.

Quem também aponta obstáculos nesse sentido é Pedro Alban, da Arquivo SSA. “A compra, instalação e obra com material reutilizado deveriam ser mais baratas, mas ainda não é assim. Faltam incentivos públicos para esse tipo de trabalho”, diz. Ele menciona como exemplos a falta de uma legislação que permita que edifícios públicos doem resíduos de obras ou a ausência de informações sobre alvarás desativados e demolições no site da Prefeitura. “Só descobrimos que um prédio está sendo demolido graças ao boca a boca ou ao circular pela cidade”. Por isso, uma das frentes de atuação de sua empresa será estruturar a pesquisa sobre legislação para arquitetura de reúso e, assim, fomentar debates sobre o tema. Tudo para construir um mercado imobiliário mais consciente e sustentável.

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