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LITERATURA

"Escrevo para entender a morte", diz Patrícia Melo

Kátia Borges | Editora da revista Muito

Por Kátia Borges | Editora da revista Muito

06/12/2014 - 11:54 h
Escritora
Escritora -

Autora de O Matador, adaptado para o cinema como O Homem do Ano, e de Inferno (premiado com o Jabuti em 2001), a escritora paulistana Patricia Melo, 52, confessa já não ter mais paciência para escrever roteiros de cinema e TV. Nadar de braçada mesmo, como diz, é na literatura. Ainda se interessa por teatro e descobriu na pintura o puro prazer: "Sem pretensões, sem cobranças". Duas décadas depois de Acqua Toffana, sua estreia literária, chega ao mercado Fogo Fátuo (Rocco), que segue o modelo norte-americano de romance policial e inaugura a trilogia que narra as aventuras da perita criminal Azucena Gobbi. Na Suiça, sua segunda casa e onde deve ficar até janeiro de 2015, ao lado marido, o maestro John Neschling, Patricia falou conosco via fone sobre morte, literatura e vida.

A ficção policial consegue dar conta da violência real?
Não dá para dizer, é bem complicado, porque a literatura não compete com a realidade. Mas, sobretudo na escola norte-americana de ficção policial, ela tem potencial para retratar a sociedade, a realidade. A sociedade é quase um elemento constitutivo do romance policial norte-americano, que é bem diferente do inglês, no qual o interesse central reside na lógica. A escola norte-americana preocupa-se com o ambiente em que o crime é cometido.

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Em que medida Fogo-Fátuo distancia-se de livros seus, como Acqua Toffana, O Matador ou Ladrão de Cadáveres?
O que há em comum entre todos os livros é a temática. Sempre me interessei pela temática urbana. Mas, nos nove livros que escrevi, anteriores a Fogo-Fátuo, nunca criei um detetive ou uma investigação criminal, embora pudesse haver um ou outro detalhe da ficção policial clássica. Nesse livro, há o crime, o mistério, a perita que faz o papel de detetive na investigação, a investigação, a sociedade violenta que produz o crime, todos os elementos do romance policial americano clássico. Nos outros livros, não interessava quem matou ou morreu, estava preocupada com outras questões.

Fogo-Fátuo já nasceu como uma trilogia?
Sim. Na verdade, quando estruturei o livro, vi que ficaria muito grande para publicar em um só volume. Serão três casos investigados, esse é o primeiro. Vou escrever ainda mais dois livros com essa mesma protagonista.

O lançamento de Fogo Fátuo marca também sua estreia como pintora (a capa do livro é um desenho seu). Quando você começou a pintar?
Ah, é coisa recente. Quando comecei a escrever esse livro, comecei também a fazer rabiscos. A pintura, para mim, é o contraponto perfeito ao ofício de escritora. Eu pinto cantando, é puramente prazer, sem compromisso, sem pretensão. A literatura é o oposto disso, é angústia, desafio, um processo longo e difícil. Mas não sou uma artista plástica. Talvez para um profissional não deva ser essa gostosura toda (risos). Comecei a desenhar porque queria fazer a capa desse livro, daí comprei o material e fiz um curso com a Jacqueline Aronis, uma artista plástica de São Paulo. Ela fez a arte da capa, a partir de uma aquarela minha. Em São Paulo, fiz uma pequena exposição para os amigos no lançamento. Você sabe que em lançamento de livro só vão os amigos, né?

Seus personagens masculinos são sempre muito fortes, como o Maiquel, de O Matador; o Reizinho, de Inferno; ou José Guber, de Elogio da Mentira. Podemos dizer que Azucena Gobbi é o seu primeiro grande personagem feminino?
Acho que sim, Azucena é o meu primeiro grande personagem feminino. Antes dela, teve só a protagonista da primeira novela de Acqua Toffana, não sei se você lembra. Bom, eu tentei fazer ela bem no formato dos clássicos detetives, como o Marlowe, do Chandler, e o Sam Spade, do Dashiell Hammett. Ela é uma figura íntegra, tem uma vida toda estruturada, socialmente muito organizada, é uma profissional brilhante. Mas, de repente, toda essa estrutura familiar e afetiva some, o chão desaparece sob os pés e ela se vê diante de um abismo. Tudo que resta do mundo organizado em que ela vivia é a competência profissional. Ela se agarra ao trabalho. É um perfil meio clássico do romance policial americano, mas é completamente adaptável ao nosso mundo.

Algumas séries de TV têm peritos como estrelas, a exemplo de Crossing Jordan ou Silent Witness. É uma profissão que lança o desafio de conviver profissionalmente com a morte.
Sim. Azucena fala que o silêncio dos mortos é linguagem e que a função dela é entender essa linguagem, traduzir isso em elementos que ajudem a elucidar os crimes. Nas pesquisas que fiz, pude comprovar que essas pessoas vivem no limite, nesse contato íntimo com a morte, e elas são afetadas por isso, claro, mas, rapidamente, aprendem a criar uma carapaça. É interessante ver como usam o humor, sem desrespeito, numa tentativa de se distanciar da cena e trabalhar com aquilo de modo leve. O perito é um profissional altamente exposto ao estresse, não é nada fácil lidar com a morte.

E você, Patricia? Como você lida com a morte?
A ideia da morte me paralisa. Desde a minha infância, desde que entendi o que ela era. A ideia da morte me mobiliza, sobretudo. Talvez por isso eu escreva tanto sobre ela, acho que eu tento entender, transformar em algo mais compreensível para mim. A minha literatura caminha muito por aí, caminha muito nessa seara de tentar entender a morte, o significado dela, o significado... Talvez, uma tentativa de aceitar. A morte é o fardo mais pesado do ser humano. Como diz Heidegger, somos "ser-para-a-morte".

E também para a violência e para o inesperado.
Mas penso que a violência não é exatamente o inesperado, o grande inesperado. O homem sempre foi muito violento, a história da humanidade é marcada pela violência, sempre convivemos com ela. O que acontece hoje é que há um conhecimento maciço da violência que acontece no mundo, seja numa pequena aldeia ou numa grande metrópole, e isso acaba fazendo parte da nossa rotina, somos bombardeados pela violência o dia todo, pela TV, pela internet, e ela vai se tornando algo sem significado especial para nós, vai se tornando parte da loucura do mundo moderno, como se ela fosse um elemento natural da cultura moderna, e ela realmente se tornou um elemento da cultura moderna, e um elemento importante. Não há como estudar a modernidade, ou a cultura norte-americana, sem tentar entender a violência. No Brasil também. Embora isso se dê de outra forma. Não podemos pensar em escrever um ensaio sobre o Brasil sem pensar a violência.

Fala-se agora de uma certa literatura do êxodo, na qual autores contemporâneos explorariam a fuga da cidade. O engraçado é que fala-se há alguns anos da crise da literatura urbana. Qual será a próxima crise da literatura brasileira?
Essa ideia da crise do romance é eterna. Sou bastante cética em relação a isso. Penso que o romance, assim como a linguagem, é algo dinâmico, muda com a percepção que cada geração tem da vida, da narrativa, do tempo. O romance é uma coisa viva. Não está em crise, mas em mutação constante. Aceitar que ele está em crise é aceitar que ele tem um formato ideal. No mais, essa coisa de rótulos, literatura urbana, literatura do êxodo, isso só faz reduzir a literatura, reduzir os autores e até mesmo uma possível discussão sobre o trabalho que esses autores produzem. É sempre uma visão reducionista da obra e do autor. Não me interesso por esse tipo de discussão.

Você ganhou o Jabuti em 2001, por Inferno. O que pensa da estrutura do mercado literário atual, de feiras e prêmios?
Eu não vejo a profusão de feiras literárias como algo negativo, ao contrário, vejo como algo importante. Penso que ainda temos poucos eventos literários. A Flip, nesse sentido, foi inaugural e serviu de modelo para outros projetos do gênero. É assim que se forma os leitores, que se coloca a literatura na agenda cultural das mais variadas regiões do País, que se incrementa o mercado editorial e que se engaja os autores. O Brasil está adotando agora um modelo que é internacional. Em relação aos prêmios, eu creio que os incentivos são sempre bem vindos, seja como reconhecimento pelo trabalho feito ou como estímulo à produção de inéditos. Penso que a vida de escritor é muito difícil, é difícil viver de escrever. Um autor, sobretudo um autor brasileiro, tem que se virar, escrevendo em jornal, fazendo traduções, trabalhando em roteiros de TV e cinema para conseguir viabilizar a sua vida e a sua escrita. Então, esses eventos e esses prêmios são importantes à medida em que contribuem para que o autor possa ser, finalmente, escritor e ponto final, sem necessitar de manter atividades paralelas.

Você já escreveu bastante para teatro, cinema e TV. Sente ser inevitável esse trânsito? Há novos projetos?
Olha, para falar bem a verdade, já descartei da minha vida o cinema e a TV. Me falta paciência para escrever para TV e cinema, são processos longos demais, longos demais mesmo. Ficar sete anos num processo cinematográfico, escrevendo e reescrevendo o roteiro, embora eu adore cinema, é algo que não consigo mais. Agora, continuo escrevendo para teatro. Entre meus projetos futuros, está o de editar todas as minhas peças em um livro, algumas inéditas. Mas, olha, a literatura é que é a minha praia, é onde eu sei me movimentar melhor, onde eu nado de braçada, aquilo que realmente gosto de fazer. A literatura é que é realmente a minha linguagem.

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