Tombamento da Casa Branca completa 30 anos
Há 30 anos a sede da Santa Casa de Misericórdia, em Salvador, foi palco de uma sessão histórica: a declaração de tombamento do terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais conhecido como Casa Branca, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Naquele 31 de maio de 1984, o terreiro ganhou status de patrimônio nacional. Essa declaração mudou os parâmetros sobre os critérios para reconhecimento de um bem como parte da memória e indispensável para a formação da cultura brasileira.
"Foi uma inflexão no conceito de patrimônio fundado a partir do Decreto 25, de 1937", define Carlos Amorim, superintendente regional do Iphan.
Luta
Quando se vê a estrutura da Casa Branca preservada com uma praça projetada por Oscar Niemeyer e um gradil modelado por Bel Borba, talvez não se consiga dimensionar o que significou a sessão do tombamento.
"A Casa Branca passava por um perigoso processo de vulnerabilidade. A comunidade chegava a pagar arrendamento ao dono do título de posse da área e um posto de gasolina estava instalado onde hoje está a Praça de Oxum", relata Serra.
De acordo com o antropólogo, o terreiro, que é considerado o mais antigo de nação ketu do Brasil, poderia ter desaparecido. "Em uma das sessões na luta pelo tombamento, o presidente da sociedade civil do terreiro, Agnelo Pereira, disse que, se derrubaram a catedral da Sé, católica, imagine o que não se faria com um terreiro sem proteção", conta Serra.
Ao lado do arquiteto Orlando Ribeiro de Oliveira, Ordep Serra coordenou uma ação que foi fundamental nessa luta: o Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia (MANBA).
O projeto, que contou com o trabalho de especialistas como a arquiteta Márcia Sant´Anna, surgiu de uma sugestão do irmão de Serra que coordenava a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM): Olympio Serra.
Identificados os patrimônios e seus problemas, o grupo resolveu ousar, afinal, a concepção de patrimônio no Brasil privilegiava apenas construções de inspiração europeia, como igrejas católicas, sobrados e casarões.
Casa Branca em dia de festa de Oxóssi em 1985 (Foto: Cedoc | A TARDE | 07.06.1985)
"O tombamento da Casa Branca foi uma vitória contra o etnocentrismo, o eurocentrismo e também contra o racismo ", completa Serra.
Uma amostra de como a batalha foi difícil é o resultado da sessão especial de tombamento: três votos a favor; um pelo adiamento; um contra e duas abstenções.
Aliás, a atuação de Marcos Vinicios Vilaça, titular do órgão, que na época tinha outro nome - Sphan - foi fundamental, assim como o papel do antropólogo Gilberto Velho, relator do projeto.
Claro que tudo só foi possível pela coragem da comunidade da Casa Branca em aceitar o tombamento quando não havia precedentes. A luta comunitária foi encabeçada pelo presidente da Sociedade São Jorge do Engenho Velho, o ogã Antônio Agnelo Pereira, e de Mãe Teté e outras sacerdotisas da Casa.
Além disso, a causa ganhou a simpatia e apoio de ialorixás de outros terreiros como Mãe Stella do Ilê Axé Opô Afonjá e Mãe Menininha, do Gantois. Jorge Amado, Carybé e até sacerdotes católicos como o abade do Mosteiro de São Bento, dom Timóteo Amoroso Anastácio, também apoiaram a causa.
Conquistas
O reconhecimento da Casa Branca era a oficialização de uma constatação óbvia, mas até então ignorada pelo Estado brasileiro: a construção da identidade nacional tinha contribuição de matriz africana. A partir de então, o caminho estava aberto.
Além da Casa Branca, mais sete terreiros são reconhecidos como patrimônio nacional: Ilê Axé Opô Afonjá (1999); Casa das Minas (2001); Gantois (2002); Bate Folha (2003); Alaketo (2004); Oxumarê (2013) e o Seja Hundé, conhecido como Roça do Ventura, que tem pré-tombamento aprovado desde 2011.
Do total de templos afro-brasileiros reconhecidos pelo Iphan, apenas um está fora da Bahia: a Casa das Minas, no Maranhão.
"Nós podemos dizer seguramente que ali houve um divisor de águas na ideia de patrimônio e que sedimentou, inclusive, as decisões sobre imaterialidade e cultura presentes na Constituição de 1988", explica o procurador de Justiça Lidivaldo Brito.
O procurador foi o primeiro titular da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Ministério Público da Bahia, pioneira no País.
Brito, que já chefiou o MP baiano, prepara um livro que conta a batalha do povo de santo para obter instrumentos jurídicos de proteção.
Intitulada A proteção legal dos terreiros de candomblé - da repressão policial ao reconhecimento como patrimônio histórico e cultural, a publicação será lançada ainda esse ano.