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Percepções granuladas

Confira a crônica

Publicado domingo, 07 de janeiro de 2024 às 04:00 h | Atualizado em 07/01/2024, 12:09 | Autor: ró-Ã*
Imagem ilustrativa da imagem Percepções granuladas
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Tive que substituir as portas do meu apartamento porque o cupim passou o dente em todas. Fora os quadros, camas, estantes, a insubstituível banqueta herdada de minha avó e outros móveis, devorados um a um por esse bicho dos infernos, que não há potestade capaz de eliminar.

Me reconhece o bom Deus como amante dos animais, embora durante a maior parte da vida eu não tenha atentado para a contradição entre amá-los e permitir que nasçam e cresçam da maneira mais atroz, com o propósito de ser abatidos a fim de agradar brevemente minhas papilas gustativas. Plantou-se a semente em 1985, com a canção Meat is Murder, do The Smiths, mas foram necessários 38 anos para que eu removesse dos meus dias qualquer produto de identidade não vegetal.

Quatro décadas inventando desculpas, evitando encarar a questão, pretendendo ter o direito de dispor da existência de bovinos, suínos, caprinos, aves, peixes, mariscos e os demais que passamos no dente como os cupins na madeira. Acontece que os cupins não têm opção.

O ovolactovegetarianismo é insatisfatório, porque a pessoa continua contribuindo com a indústria mais poluente do planeta. Obtive tal informação há menos de seis meses e bateu brabo, pois me esforço para conter ao máximo o envenenamento deste lugar que nos viabiliza. Não posso fazer muito nem abdicar de tudo sem me transformar num ser quimérico, porém abro mão, alegremente, de elementos prescindíveis.

Mas eu falava dos cupins, só não mais detestáveis do que quem consegue justificar o estupro de uma defunta gostosa num necrotério. Aliás, não é estupro; apenas vilipêndio a cadáver, sem grandes consequências. Os devoradores de madeira, no entanto, apenas obedecem à necessidade imperiosa de encher a pança, e quem manda a gente entupir a casa com árvores mortas?

Daí que me vejo inclinada a expressar solidariedade térmita no escrever desta crônica, cujo propósito era lhes destinar palavras as mais viperinas. A verdade é que só destroem minhas portas e móveis porque trago sua nutrição para dentro de casa, de modo que sou eu a responsável pela devastação que se dá. Afinal, suponho ter algum discernimento; eles tratam de sobreviver.

E sobrevivem. Teve uma vez que eu aproveitei um feriadão e inundei meu guarda-roupa com 16 litros de veneno. Já havia contratado exterminadores que apenas os adormeceram por seis meses, então achei que somente a retadona do pedaço poderia resolver o problema. Meio ano mais tarde, surpresa! Pelo menos meu serviço foi tão ineficaz quanto os profissionais.

Agora instalei portas de madeira maciça, dizem que eles não furam. Bom mesmo seria adotar um belo tamanduá, se o Ibama deixasse. Aqui em casa, entretanto, logo se tornaria obeso, devido à abundância de refeições tão facilmente obtidas.

Não que meus gatos possam ver um cupim sem que persigam ardorosamente o petisco. Quando aparece um voador, ficam enlouquecidos até conseguirem degustá-lo. Geralmente eu ajudo, tangendo o desinfeliz a uma posição alcançável. Parece que a admissão de minha responsabilidade pela destruição causada pelos cupins não vai superar o ódio que por eles cultivo desde a primeira vez em que vi aqueles grãozinhos no chão e senti a madeira oca. Os sacanas costumam deixar o exterior intacto, pra você acreditar que as coisas seguem firmes. Posso até ouvir a risadinha deles.

Eu também dou risadinha interna quando digo que parei de consumir produtos de origem animal e o interlocutor logo assume uma atitude defensiva. Significa que o grão de ervilha sob os vinte colchões, incomodando a princesa no conto de Andersen, está ali. Em algum lugar, escondidinha, a consciência dói. Impossível não doer, caso exista.

Não vou ficar pentelhando ninguém pra virar vegano, mas teimo na esperança do dia quando a humanidade lamentará o martírio a que submeteu os animais, inclusive o trabalho escravo. O cupim sabe da força do que decorre em silêncio e será testemunha.

*Escritora

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